sexta-feira, 29 de abril de 2011

O reino de Suassuna, entrevista do escritor pernambucano ao jornal Valor, 29/04/2011

"Corre que hoje a chuva está molhada", gritava um vizinho enquanto Ariano Suassuna se apressava para entrar na casa de veraneio, que fica em um condomínio bem próximo ao mar, em Jaboatão dos Guararapes, região metropolitana do Recife. Modesto, o imóvel é repleto de obras de arte, todas no estilo do movimento armorial, criado em 1970 por Suassuna e defendido até hoje com um fervor adolescente.

Já acostumado a lidar com o desconhecimento do movimento por parte do grande público, o escritor de 83 anos tem sempre na ponta da língua a definição: "O objetivo principal é lutar contra o processo de vulgarização e descaracterização da cultura brasileira".

Nas paredes da sala, destaca-se entre as várias obras um tapete colorido no qual uma onça, uma cobra e três gaviões se unem formando um só animal. Criada por Suassuna, a figura representa as facetas da morte, que o autor de "O Auto da Compadecida" e de "A Pedra do Reino" diz não temer.

Abaixo do tapete repousa um aparelho de televisão cujo modelo não é dos mais modernos. É nele que o escritor vem acompanhando, satisfeito, a novela "Cordel Encantado", da Rede Globo. A veiculação da trama, argumenta, é "uma vitória para os que defendem a aproximação entre a cultura de massas e a cultura popular brasileira".

Neste fim de semana, Suassuna estará na capital paulista com a sua já tradicional aula-espetáculo, espécie de fusão entre teoria e prática culturais. A aula será no teatro do Sesc Vila Mariana, antes da apresentação de "As Cochambranças de Quaderna", peça de sua autoria que une duas histórias. A primeira conta a saga de duas irmãs prometidas em casamento, na qual o noivo de uma delas resolve casar-se com a outra. A segunda trata de uma mulher que faz um pacto com o diabo para que este carregue para o inferno o seu marido infiel e a amante.

Fazendo jus ao apelido de "chocalho", atribuído à fama de conversador, Suassuna falou longamente ao Valor, com voz baixa e pausada, mas com o bom humor característico. Fã de Dostoiévski, Cervantes e Lula, o escritor falou de política, conjuntura internacional, influências artísticas e até da era digital, da qual prefere manter-se alheio, apesar de ter um blog administrado por seu assessor, Alexandre Nóbrega.

O mestre da literatura e da dramaturgia só economizou nas palavras quando questionado sobre seu novo romance, ainda sem data para lançamento pela editora José Olympio. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: Como começou essa história de aula-espetáculo?

Leo Caldas/Valor

Ariano Suassuna: Começou há muito tempo, mas, oficialmente, quando fui secretário de Cultura do último governo Miguel Arraes [1995-1998]. Na primeira reunião que ele fez, pediu que os secretários apresentassem um programa imediato que não gerasse grandes gastos e tivesse alguma repercussão. Imaginei a aula-espetáculo. Disse logo que não queria assessores políticos, mas sim assessores artistas, que pudessem me ajudar. Então ele nomeou músicos e vários outros artistas, bailarinos, e eu, então, pude organizar essas aulas. No início do segundo mês, apresentei a primeira aula-espetáculo.

Valor: Qual é o formato dessa aula?

Suassuna: Normalmente dou uma aula teórica sobre a cultura brasileira e vou exemplificando com as diversas partes do espetáculo. A gente organiza antes, ensaia. Conto, atualmente, com cinco músicos, cinco bailarinos e dois cantores. Organizei, por exemplo, um espetáculo chamado "Nau". Conto com um grande músico e compositor, chamado Antonio Madureira. Ele compôs essa música "Nau" em homenagem aos portugueses que aqui chegaram em naus. Então, dei o nome do espetáculo de "Nau", que é como uma viagem pela cultura brasileira. A primeira música cantada e dançada nessa aula chama-se "Toré". Não sei se você sabe, mas toré é o nome de uma cerimônia religiosa indígena, e, como a primeira vertente cultural que influenciou a formação da cultura brasileira foi a indígena, nós apresentamos "Toré" como o primeiro número da aula, em homenagem à cultura indígena. Depois vem "Nau", em homenagem à cultura portuguesa. Depois vem um maracatu chamado "Estrela Brilhante", em homenagem à cultura negra. Normalmente é assim: a gente apresenta diversos números e narro a formação da cultura brasileira. E assim a gente vai até o fim.

Valor: Sobre o seu próximo trabalho, o senhor já falou que seria o "livro de sua vida", que reuniria em uma só obra dramaturgia, romance e poesia. Depois, falou também que seria uma trilogia, uma espécie de conclusão de sua obra, uma conclusão de "A Pedra do Reino". Afinal, o que está sendo preparado?

Suassuna: As duas coisas. Pretendo, nesse livro, terminar o romance que deveria ser uma trilogia. "A Pedra do Reino" acabou valendo por ela mesma. Então, hoje, "A Pedra do Reino" serve de introdução ao novo romance. Agora, isso não tem nada a ver com essas aulas-espetáculo.

Valor: Mas ainda sobre o próximo trabalho...

Suassuna: Olha, no caso do próximo trabalho eu não vou poder lhe falar muito, não, porque o editor pediu que eu não falasse.

Valor: Existe uma data para o lançamento?

Suassuna: Tem não.

Valor: Em uma entrevista, o senhor disse que "a cultura é a sede da honra e da alma de uma nação", mas só pode exercer esse papel se os chamados "soldados" (políticos e empresários) pavimentarem o caminho, já que o senhor, por exemplo, não pertencia a esse ramo. Após participar de alguns governos, o senhor se considera do ramo?

Suassuna: Não. Veja, os cargos que exerci foram sempre ligados à cultura e sempre pedi, e fui atendido, que não houvesse interferência política no meu trabalho. Sempre trabalho com independência. Exerço o cargo de secretário de Cultura como escritor que sou. Agora, sou um escritor preocupado com os problemas do meu país e procuro exercê-lo assim, até o ponto em que não interfira na minha liberdade criadora.

Valor: A quantas anda a política cultural no Brasil?

Divulgação

"As Cochambranças de Quaderna", em cartaz no teatro do Sesc Vila Mariana, em São Paulo: neste fim de semana, antes da peça, Suassuna realizará uma de suas aulas-espetáculo
Suassuna: Na minha opinião, não só a política, mas a situação cultural no Brasil melhorou. Você talvez não tenha notado, pois é muito novo, mas, para uma pessoa na minha idade, o fato de a Rede Globo estar exibindo uma novela chamada "Cordel Encantado"... Olha, você não podia pensar nisso dez anos atrás.

Valor: O senhor a está assistindo?

Suassuna: Eu assisto à novela. Tenho restrições e as minhas condenações, mas a assisto, acho que as novelas da Globo são bem melhores do que qualquer enlatado americano. Acho que um escritor sério deve prestar atenção a isso.

Valor: O que significa para a cultura brasileira o fato de a Globo exibir essa novela?

Suassuna: Significa uma vitória para todos que sempre defendemos que a cultura de massas se aproximasse da cultura popular brasileira. E eles estão fazendo isso, estão procurando. Você veja, colocaram uma gravura animada na vinheta da novela. Uma vinheta claramente inspirada na gravura utilizada no folheto de cordel nordestino. E também tem um personagem que você jura que saiu do meu teatro.

Valor: Qual?

Suassuna: O que Matheus Nachtergaele está fazendo, uma espécie de profeta, meio louco, que fala que viu um reino envolvido numa bola de fogo. Aquele poderia ter saído do meu universo. Eu tenho um que, aliás, foi encenado pela Globo. Tenho uma peça chamada "Uma Mulher Vestida de Sol", que foi o primeiro trabalho que fiz na televisão, com direção de Luiz Fernando Carvalho, que tem um personagem que é um profeta, chamado Cícero, que anda com um cajado na mão, no mesmo jeito de Nachtergaele.

Valor: Essa aproximação entre cultura popular e de massas está mesmo ocorrendo?

Suassuna: Vejo isso como uma vitória enorme. Tenho notado um interesse maior pela cultura popular, mesmo nos meios de comunicação de massas. Não está como deveria ser, não, mas está melhorando. Como secretário de Cultura do primeiro governo de Eduardo Campos [2007-2010], percorri o Estado de Pernambuco todo. Organizei espetáculos e resolvi interiorizar a cultura. Sou um sertanejo e sei a carência que existe nas populações do interior, especialmente do sertão, de espetáculos de boa qualidade. Então, imaginei um programa de interiorização da cultura. Peguei uma caravana, um verdadeiro circo, e saímos aí pelo Estado todo. Andei em 60 e tantos municípios e o que noto é uma presença maciça da juventude, tanto nos espetáculos que dou aqui no Recife como no alto sertão.

Valor: Agora que o senhor deixou a secretaria, continua esse trabalho?

Suassuna: Continua. Mas eu deixei a Secretaria de Cultura, pois, da maneira como ela foi organizada neste mandato, eu não queria.

Valor: O que houve?

"Tenho notado um interesse maior pela cultura popular, mesmo nos meios de comunicação. Não está como deveria ser, mas está melhorando"

Suassuna: A parte burocrática aumentou muito. Por exemplo, existe aqui a Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco, a Fundarpe. A Fundarpe tem um fundo de cultura que recebe os projetos de todos os grupos que o governo vai ajudar. E eu não queria fazer esse tipo de trabalho. Queria fazer o meu trabalho criador. Então, o governador me colocou numa secretaria especial de assessoria dele.

Valor: Enquanto o aguardava, perguntei aqui se o senhor usava celular e recebi como resposta uma gargalhada. Como vê essa chamada "era digital" e sua influência na cultura?

Suassuna: [Risos] Isso eu não sei, não. Isso é território dos outros. A mim não mudou nada. Continuo a ser a mesma pessoa que sempre fui e eu não me deixo dominar, não quero nada que mande em mim. Pense num sujeito teimoso e difícil, esse sou eu nesse ponto. Não quero que ninguém mande em mim, muito menos um objeto. E o celular é um objeto que escraviza. Já não gosto do telefone fixo, que uso o menos possível, quanto mais um telefone que acompanha a gente o tempo inteiro.

Valor: Realmente, seu blog está desatualizado...

Suassuna: Não tomo nem conhecimento. Não sei nem o que é um blog. Nem quero saber. Se você sabe, por favor, não me explique. Não sei usar computador, não uso telefone celular. Continuo o mesmo homem que era em 1947, quando publiquei minha primeira peça de teatro.

Valor: O senhor também nunca saiu do Brasil. Nada na cultura estrangeira o atrai?

Suassuna: Se fosse perto, eu até ia a alguns países. Eu falei Portugal, Espanha, o norte da África e a Grécia eu ia. Se fosse ali perto.

Valor: Por que esses países?

Suassuna: Portugal por motivos óbvios. A Espanha também. A Península Ibérica, como um todo, eu tenho uma admiração enorme e uma ligação enorme. Tenho grande admiração por Cervantes, por Santa Teresa, por Calderón de La Barca, então eu sou louco pela cultura espanhola. Sou louco pela cultura russa, também. Tenho admiração por [Nikolai] Gógol e [Fiódor] Dostoiévski, principalmente, e [Liev] Tolstói também. Mas à Rússia eu não quero ir nunca. Só de pensar no clima... vou nada.

Valor: Ainda falando de exterior, como é que o senhor vê a ascensão da China em meio a uma certa "perda de poder" dos Estados Unidos?

Suassuna: Gosto muito. Quando eu nasci, a gente vivia sob o tacão do chamado imperialismo americano. Então vejo agora alguns países começando a confrontar esse poder, eu fico muito contente. Mas estou mais contente ainda com a união dos chamados Brics: Brasil, Rússia, Índia, China e agora África do Sul.

Valor: Qual é a influência desse movimento sobre a produção e demanda cultural?

Suassuna: Olhe, deixa eu lhe dizer uma coisa. Como eu lhe disse, as pessoas têm de mim uma visão muito injusta a respeito de uma estreiteza que me norteia no campo cultural. Não é verdade. A cultura me interessa universalmente. O que causa, talvez, esse equívoco é porque eu manifesto, de vez em quando com muita ênfase, uma repulsa total à cultura de massas. Mas isso não tem nada a ver com cultura. A de massas é uma cultura nefasta, criada de propósito, nivelada pelo gosto médio, para poder uniformizar, e não universalizar, a cultura. Então, gosto muito da cultura de todos os países, mas com suas características. Por exemplo, gosto muito de um pintor japonês chamado Katsushika Hokusai, gosto muito de um cineasta japonês chamado Akira Kurosawa. Pois bem, eu gosto muito deles dois e gosto porque eles atingem o universal por meio do nacional, por meio da sua cultura. Sem abrir mão. É uma contribuição da cultura japonesa para a cultura universal. Acho que cada país deve contribuir para a cultura universal com a sua nota peculiar, diferente, singular. O ser humano é o mesmo em todo lugar. Quando eu leio um romance russo, não quero encontrar algo que podia ser escrito em Nova York. Quero encontrar o ser humano por meio das circunstâncias peculiares da Rússia. Esse é o encontro.

Valor: Seria, nesse caso, o movimento armorial japonês?

Suassuna: Exatamente.

Valor: Alguns estudiosos afirmam que a arte armorial não se concretizou em um movimento, mas apenas em um estilo comum a muitos artistas. O senhor concorda?

Suassuna: Quero saber por que não é um movimento. Veja bem, eles têm razão de dizer que, como todo movimento, o armorial passou. O armorial aconteceu entre 1970 e 1980. Durou até muito. A Semana de Arte Moderna era para durar sete dias e não durou nem os sete, durou três. Então, o movimento, por sua natureza, é passageiro. O que ficou foi uma estética armorial. Olha, acaba de se fundar no Paraná um grupo musical, de câmara, jovem, chamado A Rosa Armorial. No Rio tem o grupo Gesta, de música armorial. Agora, por que não foi um movimento é que eu não sei.

Valor: Ao falar das aspirações do brasileiro, o senhor mencionou certa vez que no século XIX a elite brasileira queria ser francesa e agora quer ser "caricatamente e grotescamente" americana. Como é difundir a arte armorial em um cenário como esse?

Suassuna: Nem todo o povo do Brasil real está de acordo com isso. Cito, porque tenho percorrido o Brasil inteirinho e vejo como, principalmente a juventude, para pra ouvir essas ideias.

Valor: Mas há uma preferência majoritária pelo enlatado?

Suassuna: Pode ser. Eu nunca me iludi. Mas aí quem sofre com isso é todo tipo de arte, não só a armorial. Você hoje pega esses grupos de música internacional, eles têm um público maior do que a gente tem. Mas sempre foi assim. Esse desafio enfrento com a maior coragem e a maior alegria. Faço uma distinção entre êxito e sucesso. Essa distinção é fundamental para me entender e para entender meus companheiros, bem como os artistas de qualquer tempo. No meu entender, nenhum artista verdadeiro busca o sucesso. Busca o êxito, o que é bem diferente. O sucesso, por sua própria natureza, é efêmero. Me arranje um nome de uma banda, composta por brasileiros, mas que faça música internacional.

Valor: Sepultura.

Suassuna: Pronto. Você pega a banda Sepultura ou a banda Calypso, ela tem muito mais sucesso do que Euclides da Cunha. Muito mais. Se você anunciar uma conferência sobre Euclides da Cunha, se forem 40 pessoas já serão muitos. Já a banda tem público de milhares de pessoas em cada espetáculo. Então, eles têm sucesso. Mas me diga qual é o êxito maior? É "Os Sertões". Todo ano sai uma publicação. E mesmo os brasileiros que nunca tenham lido sabem que existe um livro chamado "Os Sertões" que é fundamental para o nosso país. Do mesmo jeito que o "Dom Quixote" é fundamental para a Espanha. Enquanto existir o "Dom Quixote", você pode invadir militarmente a Espanha, você pode dominá-la economicamente, mas a Espanha vai ficar viva porque tem um livro chamado "Dom Quixote". A mesma coisa digo eu de "Os Sertões". Podem desmoralizar, descaracterizar, vender, mas, enquanto existir "Os Sertões", sabe-se que existiu um país chamado Brasil e que aquele era um livro fundamental. Aquilo é êxito. Sei que todo artista verdadeiro o busca.

Valor: E qual é a vertente da arte armorial que teve mais êxito?

Suassuna: Êxito é tudo igual. Agora, algumas tiveram um picozinho de sucesso. Por natureza, a música. Existe um número maior de pessoas que ouvem música do que aquelas que leem.

Valor: O senhor fala da injustiça social que dilacera o Brasil entre o país dos privilegiados e o dos despossuídos. Isso mudou ou está mudando?

Suassuna: Mudou um pouco, o que atribuo a uma coisa histórica que foi o governo Lula. O número de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza nunca alcançou um índice tão pequeno em toda a nossa história. Para mim, foi o maior presidente que o Brasil já teve. O que ele pôde evitar de entregar, evitou. Evitou a entrega da Petrobras, do Banco do Brasil, além de ter reduzido o índice de miséria.

Valor: O senhor considera a poesia "a fonte profunda de toda sua obra". Por que ela teve menos sucesso no seu trabalho?

Suassuna: Quando eu falo em poesia, uso um conceito que era da cultura grega. Os gregos chamavam poesia não somente a "arte do verso", mas "o impulso criador que está por trás de todas as artes". Quando era adolescente, pratiquei a escultura, a música, a poesia, o romance e o teatro. Mas depois eu vi que não dava para ser como na Renascença, quando o papa pegava Leonardo da Vinci ou Michelangelo e dizia para não se preocuparem com o dia a dia, mas apenas com a criação. Não estou me comparando com eles, mas apenas com a atitude diante da arte. Então, eu tive que escolher e fiquei com a literatura. O sucesso menor da poesia também é por natureza: entre o romance e a poesia, o leitor prefere o romance. Tanto que tem editor que se recusa a publicar. Não é o meu caso. O meu não publica porque eu não quero.

Valor: O senhor tinha um livro de poesia em andamento.

Suassuna: Tem. Acontece que eu reservava para usar num contexto maior. Nunca quis dar muita divulgação. Quero guardar para um contexto mais adequado.

Valor: A morte está sempre presente na sua obra. Qual é a sua relação com ela?

Suassuna: Não sei. Isso é uma coisa para você tratar com o psicanalista. Tenho em mim essa dualidade entre o riso e a morte. Talvez pelos acontecimentos da minha infância, eu perdi meu pai com três anos de idade... Não sei avaliar, mas sei que acontece comigo. Mesmo com a morte eu gosto de tratá-la com humor.

Valor: Não tem medo dela?

Suassuna: Acho que não. Se eu tivesse, não era tão bem-humorado, até porque estou bastante perto. Olha, você quer me matar, é?

terça-feira, 19 de abril de 2011

Washington desafia endividamento, Jornal valor 19/04/2011

Peter Coy | Bloombergbusinessweek


Timothy F. Geithner diz que, se teto de endividamento não for elevado, há algumas medidas de emergência em vistaSuponhamos que o Congresso dos Estados Unidos não consiga elevar o teto de endividamento nacional antes de o governo federal americano alcançar o limite atual de US$ 14,294 trilhões, o que ocorrerá, pelas previsões, por volta de 16 de maio. O quanto isso seria mau? O secretário do Tesouro dos EUA, Timothy F. Geithner, que ganha para se preocupar com esse tipo de coisa, diz que dispõe de algumas medidas de emergência. O Departamento do Tesouro poderia manter o governo em funcionamento por dois meses, aproximadamente - por meio, por exemplo, da tomada de empréstimos junto ao Civil Service Retirement e Disability Fund, o instituto de previdência dos servidores americanos, em vez de recorrer a investidores particulares.

Até o início de agosto, no entanto, o Departamento do Tesouro estará em condição comparável à de um mutuário encurralado que tem de decidir que contas vai pagar e que outras porá na gaveta. Os EUA começarão a descumprir os pagamentos de algumas notas e bônus do Tesouro à medida que forem vencendo, portanto os credores exigirão taxas de juros mais elevadas para os novos bônus, como fizeram com a Grécia e outros países altamente endividados. Alguns fundos de pensão e empresas de seguros que são enormes detentores de títulos do Tesouro dos EUA terão de livrar-se deles em massa porque são proibidos de possuir papéis de instituições inadimplentes. O pânico resultante dessa operação puxaria as taxas ainda mais para cima - embora ninguém possa dizer precisamente a que altura chegariam, já que esse tipo de coisa nunca aconteceu. "Ameaçar não elevar o teto de endividamento não é apenas brincar com fogo", diz Robert A. Brusca, economista-chefe da consultoria Fact and Opinion Economics, de Nova York. "É brincar com fogo numa fábrica de dinamite."

Destruir a plena credibilidade e crédito dos Estados Unidos da América não é questão de pouca importância - o que torna ainda mais assustador o fato de tantos americanos quererem ver isso acontecer. Quarenta e seis por cento dos pesquisados em do Wall Street Journal/NBC News realizada de 31 de março a 4 de abril disseram ser contrários à elevação do teto de endividamento. Os entrevistadores fizeram a pergunta de novo depois de reproduzir os dois lados do argumento: alguns disseram que, se o teto não for elevado, as contas, benefícios, salários da administração governamental e os juros não serão pagos. Outros disseram que elevar o teto "vai dificultar a tarefa de pôr a casa em ordem para o governo", aumentando os títulos mantidos por outros países e devidos por gerações futuras de americanos. Depois de examinar essas duas alternativas, a oposição da opinião pública à elevação do teto de endividamento aumentou, para 62%.

Essa atitude de "botar para quebrar" está encorajando os membros do Congresso, que estão se preparando para deixar as negociações de teto de endividamento até o último momento possível, na esperança de arrancar o maior ganho possível. O líder da maioria na Câmara dos Deputados, o republicano Eric Cantor, de Virgínia, disse no último dia 12 que seria "irresponsável" elevar o teto de endividamento sem limites garantidos sobre a expansão dos gastos. Cantor pode estar se preparando para o malabarismo político; outros parecem convidar para uma colisão frontal. O senador Marco Rubio, republicano pela Flórida, disse num editorial do Wall Street Journal a 30 de março que elevar o teto de endividamento não seria "mais do que adiar as decisões difíceis para depois das próximas eleições. Não podemos nos dar ao luxo de continuar esperando."

É nauseante presenciar essa postura antiendividamento de alguns dos próprios parlamentares que criaram o endividamento desde o início, ao votar por aumentos dos gastos e reduções dos impostos. O presidente Barack Obama não está isento de culpa: ele votou contra a elevação do teto quando era senador, porque era George W. Bush que tinha de tomar a decisão naquela época.

Apesar dessa postura, o teto de endividamento desempenha um papel valioso no processo político do país. O limite imposto pelo Congresso é um substituto útil do teto real - aquele que, mais cedo ou mais tarde, será imposto pelos credores do país. Em algum momento eles vão ficar fartos do crescente endividamento dos EUA e dirão 'chega'. Ninguém sabe quantos gastos deficitários os EUA podem se permitir antes de alcançar esse teto intransponível, que não pode ser elevado por uma simples votação na Câmara dos Deputados e no Senado. Evidentemente, os EUA ainda estão bem abaixo dele. Os investidores mundiais estão dando demonstração da confiança na capacidade de pagamento dos EUA ao comprar bônus do Tesouro de 10 anos, protegidos contra a inflação, que rendem apenas 0,8% ao ano. É mais barato custear o endividamento agora do que durante os anos de superávit público do governo Clinton. Mas os vigilantes dos bônus podem se enfurecer num piscar de olhos - basta conferir o caso da Grécia, que viu seu custo de tomada de empréstimo de 10 anos duplicar para quase 13% nos últimos doze meses.

Por mais ridículo que pareça às vezes, a briga em torno da elevação do teto de endividamento imposto pelo Congresso dá aos EUA uma prenoção de como seria afrontar o limite real. Sancionar um teto de endividamento, a exemplo de estar no patíbulo com a corda no pescoço, concentra o pensamento maravilhosamente. Trata-se de um mecanismo de força artificial. Soluções de compromisso são alcançadas apenas quando os EUA se encaminham diretamente para a beira da inadimplência. Na cultura disfuncional de Washington, o teto desempenha o papel de um progenitor severo. Os japoneses têm uma palavra para isso: gaiatsu, que significa pressão externa.

O problema é que, na ausência de liderança política, o limite de endividamento se torna uma metralhadora giratória em vez de uma alavanca. Num clima político de dissenso, povoado de ideólogos, há o risco real de que os EUA ficarem inadimplentes devido à paralisia dos membros que manterão suas posições, por princípio, até o fim. Um dos combatentes que não mostraram a menor vontade de ceder para negociar uma solução de compromisso é o parlamentar republicano Paul C. Broun, da Geórgia, um médico conservador que votou contra a resolução de 8 de abril de evitar um fechamento do governo federal americano por não ter reduzido suficientemente os gastos. Broun acusou reiteiradamente o presidente Obama de tentar uma "tomada de controle socialista" do país.

Nunca houve melhor hora para cabeças mais frias se apresentarem e assumir a liderança. As linhas gerais do que precisa ser feito são óbvias. Em primeiro lugar, não se deixe dispersar pelo atual déficit público de curto prazo, que vai desaparecer, em grande medida, à medida que o país se recupera da profunda recessão de 2007-09. Cortes drásticos agora desacelerariam essa recuperação. O problema no qual é preciso se concentrar é o déficit público de longo prazo, cujo crescimento, num ritmo alarmante, está projetado depois de 2020, principalmente devido à alta dos gastos em direitos, principalmente aos sistemas Medicare e Medicaid, diante do envelhecimento e da maior necessidade de cuidados médicos da geração do "baby-boom" do pós-guerra (atualmente na faixa dos 57 aos 65 anos). Com o "cenário fiscal alternativo" do Departamento de Orçamento do Congresso americano - que é, na verdade, o curso mais provável, a menos que Washington passe a levar a sério a redução do déficit -, a dívida federal em poder do público triplica para 185% do PIB até 2035, em relação aos 62% do ano passado.

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S&P abre os olhos para o buraco financeiro dos EUA

Ainda que as agências de classificação de riscos tenham perdido credibilidade depois da crise de 2008-- quando davam boas notas a bancos e empresas que quebraram e levaram o mundo à pior crise econômica pós-depressão dos anos trinta do século passado-- continuam a fase estragos ao anunciarem suas notas de risco negativas.
Os EUA ontem sentiram abalos, leves, é claro, tamanha é a grandeza de sua economia, e porque são muito grandes para ser quebrados, ao verem reduzidas de estável para negativa as perspectivas para sua dívida soberana, pela agência Standar & Poor (S&P). Foi o suficiente para baixas nas bolsas de valores mundo afora.
Na verdade não há nenhum risco de os EUA darem um calote, mas é um despertar para as contas fiscais e dívida pública norte-americanas. O déficit deve chegar a US$ 1,6 trilhão e a dívida pública é calculado hoje na casa de US$ 14,2 trilhões. Qualquer outro paíse com um rombo deste porte já teria sido decretado a sua falência, haja vista a situação de Portugal, Grécia e as desconfianças frente a Espanha.
Em todo caso acendeu-se a luz amarela. Quer dizer que a maior economia global não está bem de saúde financeira. A situação piora à medida que o sistema político americano, polarizado entre democratas e republicanos, caducou. Não dá conta para tirar os EUA do buraco que a cada ano se aprofunda.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

As moedas do futuro, Ernesto Lozardo para o Valor

O poder da moeda sempre esteve ligado ao poder econômico da nação. Até o início do século passado, a libra esterlina foi a moeda de reserva de valor no mercado internacional. Daí em diante, o dólar americano tornou-se a moeda líder para a estabilidade do sistema de pagamentos internacionais, como foi estabelecido no acordo de Bretton Woods (1947-1971).
Isso se deveu à liderança econômica dos Estados Unidos no período pós-guerra, o qual ficou conhecido como a era dourada do crescimento econômico mundial. Na época, o país produziu quase 50% do PIB mundial, foi responsável por 85% do total dos investimentos diretos internacionais, possibilitou a reconstrução da Europa, contou com poupança superior à demanda de investimentos domésticos, superávit nas contas públicas e na conta corrente e construiu-se um grandioso e sofisticado mercado financeiro.

Essas condições já não existem há décadas. Os Estados Unidos produzem 23% do PIB mundial, responde por 20% do total dos investimentos diretos internacionais, a poupança líquida é mínima. Desde o governo do presidente Reagan (1980), o país apresenta déficit na conta corrente como fator de obtenção de recursos externos para atender à demanda de investimentos. Trata-se de uma sociedade que gasta além dos limites da renda.

O elevado deficit público induz a elevação de impostos, inflação e juros, redução da renda real do trabalhador e dólar mais desvalorizado. Esse deverá ser o cenário da economia americana nesta década.

Os reflexos dessa queda gradual da economia dos Estados Unidos têm influenciado a composição das reservas monetárias internacionais. Em 1973, o dólar representou 85% do total dessa reserva. O marco alemão representou 6,7% e a libra esterlina, 5,9% do total. Em 2009, o dólar americano caiu para 62% no total, uma queda de 23 pontos percentuais. Nesse tempo, surge o euro, que poderá compensar as incertezas da moeda americana, mas não substituí-lo.

O euro representou 27% do total da reserva. O euro ainda não se apresenta como alternativa, mas pode-se traçar um cenário com mais de uma moeda nas transações comerciais. Embora não se conheça o comportamento das moedas de países emergentes nas reservas e nas transações internacionais, pode-se prever o papel de liderança de moedas de países emergentes nas transações financeiras e comerciais futuras.

A história não confirma essa hipótese, porém a realidade mundial é distinta da que prevaleceu no período do acordo de Bretton Woods. Existirão outras moedas nas transações internacionais: além do dólar, teremos o euro, o renminbi, a rúpia e o real.

Outras nações alcançarão elevado grau de prosperidade ao longo deste século pondo fim ao monopólio do dólar

A previsão é de que, em 2050, a economia dos Estados Unidos representará 12% do Produto Interno Bruto (PIB) global; a da China, 22%; a da União Europeia (27 países), 10%; a da Índia, 7%; e a do Brasil, 4%. Isso não significará enfraquecimento do dólar nas transações internacionais, mas o fim do monopólio da moeda americana pelo fato de que outras nações alcançarão elevado grau de prosperidade ao longo deste século.

O euro está sendo objeto da reserva monetária entre os países da região. A rúpia (Índia) e o renminbi (China) já são moedas de reserva entre países asiáticos. O real será a moeda líder na América do Sul e estará no conjunto das reservas de moedas dos países que tenham comércio com o Brasil.

Será comum bancos aceitarem depósitos em moedas internacionais, por exemplo, em euro, e emprestarem renminbi ou vice-versa. Provavelmente, também teremos uma nova moeda representada por uma cesta de moedas de países emergentes, tendo o dólar e o euro como integrantes dela. Essa deverá ser a nova arquitetura monetária, que dependerá de uma profunda reforma no sistema financeiro internacional e de amplo processo de abertura econômica entre nações desenvolvidas e emergentes.

Acredito que a moeda brasileira poderá figurar entre as que farão parte das transações internacionais. Para tanto, há de se fazer a reforma tributária, tendo em vista a flexibilidade, a redução do percentual das alíquotas sobre a produção e a folha de pagamento, bem como sobre a renda social da classe média. Esse balizamento de carga tributária deverá ser compatível com a existente entre os emergentes. A meta de curto prazo de se eliminar a miséria está correta. No médio prazo, deve manter-se, como estratégia, maior abertura econômica e prover o país de infraestrutura adequada, tornando-o mais eficiente e competitivo. Isso não é um sonho, mas uma oportunidade factível.

A história de que o câmbio mata uma nação não passou de uma crítica à inconsistência da política monetária e fiscal da época. A taxa de câmbio em si não tem esse poder devastador. No entanto, a fragilidade dos fundamentos macroeconômicos, a dívida pública crescente e o regime tributário adverso causam danos irreparáveis ao progresso de uma nação.

O século XXI será de aprofundamento nas relações multilaterais com base em uma nova ordem monetária, na qual várias moedas coexistirão, integrando países em regiões comerciais. O real será moeda utilizada nas transações comerciais entre seus parceiros emergentes globais.

O Brasil, portanto, precisará estar preparado para enfrentar esse novo mundo financeiro, comercial e de moedas globais. Os bancos residentes terão a missão de promover o Brasil na economia financeira global. A política econômica deverá assegurar a estabilidade do crescimento real da renda das pessoas, a redução contínua do custo da produção nacional, o aumento da produtividade da mão de obra, a capacidade competitiva global de todos os setores produtivos e a plena distribuição da renda. Nada disso é impossível ou improvável.

A crença nessas possibilidades está alicerçada na história recente desses países: União Europeia, Brasil, China, Índia e vários do Pacífico Asiático estão construindo seus sonhos de nação em um mundo global, enquanto que os Estados Unidos terão de reconstruir um novo sonho para sua liderança.

Ernesto Lozardo é professor de Economia da EAESP-FGV e autor de "Globalização: a certeza imprevisível das nações".