quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Dez anos do colapso
Por Daniel Rittner

Dez anos depois do colapso, duas histórias de empreendedorismo mostram como a Argentina, graças ao empenho de sua gente e apesar da fragilidade institucional do país, mudou desde a tarde nublada em que um helicóptero encostou no teto da Casa Rosada para resgatar o então presidente Fernando de la Rúa. O piloto sequer pôde pousar no heliponto do palácio presidencial, tamanha a convulsão social na Praça de Maio e o risco à integridade física do passageiro ilustre, que havia acabado de assinar sua renúncia. Era 20 de dezembro de 2001, e Sergio Kompel se lembra perfeitamente daquele dia, não só pelos 38 mortos, pelas milhares de donas de casa que empunhavam "cacerolas" como armas contra o governo, pelos 5 mil pontos de risco-país e pelo índice de pobreza recorde de 54% da população.

Era justamente a data de inauguração do lava-autos de Sergio Kompel, no estacionamento de um shopping center no charmoso bairro da Recoleta, e dava para contar os clientes com os dedos de uma mão. Não podia haver um dia pior. "Ainda por cima, chuviscava", recorda-se. Contra todos os prognósticos dos amigos, Kompel e seu sócio, que apontavam o mau momento para uma empreitada assim, perseveraram no negócio. Investiram em inovação, criando um sistema ecologicamente correto de lavagem de carros, que usa apenas cinco litros de água por vez e não deixa resíduos químicos. Hoje parece banal, mas era novidade dez anos atrás, principalmente fora dos Estados Unidos ou da Europa. Eles redirecionaram suas apostas e passaram a frequentar feiras internacionais de franquias. Enquanto abriam suas primeiras lojas em Buenos Aires, expandiam-se no exterior.

Duas empresas simbolizam o renascer da Argentina

Hoje a ProntoWash tem 400 unidades e fatura US$ 50 milhões por ano, dos quais apenas 20% vêm da própria Argentina. São 50 lojas nos Estados Unidos, 40 no Brasil (especialmente na região Sul) e franquias no Kuwait, em Moçambique, na Moldávia e no Cazaquistão. "Os lava-autos sempre foram um segmento muito informal e havia a oportunidade de construir algo mais profissionalizado. Para a maioria das pessoas, lavar o carro é uma perda de tempo. Para as mulheres, é um ambiente machista. Decidimos nos transformar numa espécie de McDonald's dos lava-autos", ensina Kompel.

Naqueles mesmos dias de dezembro, Inés Berton via pela CNN e pela BBC as cenas de caos em Buenos Aires, com a sensação de que já era hora de deixar para trás os sete anos em Nova York. Casualmente, ouviu Caetano Veloso cantando "Vuelo al Sur" e decidiu que era hora de voltar para estar perto de sua gente. Desembarcou no aeroporto de Ezeiza com US$ 132 no bolso, enquanto muitos amigos seus faziam o caminho inverso e emigravam da Argentina para os países ricos. Anos antes, quando havia investigado os motivos de suas enxaquecas constantes, Inés descobriu que tinha olfato hipersensível. No Guggenheim do Soho, onde trabalhava, tirou proveito disso: ia com frequência à T Emporium, sala de chás instalada na parte de baixo do museu, onde pedia combinações com ingredientes que ela mesma escolhia. Os outros clientes eram atraídos por suas invenções e os donos se deram conta de que vendiam mais quando ela estava por perto. Passou, então, a trabalhar lá até voltar.

Em plena crise econômica, Inés alugou por US$ 200 um espaço na galeria do hotel Alvear, provavelmente o mais chique de Buenos Aires. Abriu a Tealosophy, divulgando-a entre a clientela para a qual já vendia seus chás, incluindo a Petrobras e a família Moreira Salles. Suas misturas encantaram o Dalai Lama, Sofia Copolla e os reis da Espanha. Inés rodou o mundo em busca de aromas autênticos. Achou inigualáveis a camomila do Egito, a baunilha de Madagáscar, as clementinas da Itália e a verbena do sul da França. Com ingredientes como esses, hoje ela exporta a 20 países, tem uma loja de 150 m2 em Barcelona e seus chás são servidos na Harrods, em Londres, e nos restaurantes de Carla Pernambuco e Alex Atala, em São Paulo. "E nunca gastamos um centavo com publicidade", diz.

Filhas do colapso de 2001, a ProntoWash e a Tealosophy são microrretratos de um país que buscou a redenção. Nos últimos oito anos, o crescimento médio do PIB chega a 8%, a taxa de investimento supera a brasileira (tem ficado em torno de 23% do PIB) e os resultados em conta corrente são permanentemente melhores do que os nossos. A pobreza baixou a menos de 20% da população, segundo institutos independentes, e a menos de 10%, segundo o governo. A inflação deve ficar em dois dígitos pelo sétimo ano seguido, e é o principal dado negativo da economia argentina hoje, mas a oposição errou ao concentrar seu discurso na alta de preços para conquistar votos nas eleições presidenciais de outubro. Pelo simples fato de que 40% dos eleitores - argentinos de até 40 anos - entraram no mercado de trabalho depois de 1991, quando a hiperinflação deixou de ser um problema. É gente que não tem a maquininha de remarcar preços na memória, mas sabe bem o que é recessão e coloca o desemprego no topo de seus medos. Tolera, portanto, inflação anual de 25% - desde que tenha trabalho e reajustes salariais na mesma proporção.

O "modelo K", política econômica do kirchnerismo que ajudou a tirar a Argentina do calvário, já não é o mesmo. O superávit primário, que atingiu 5% em 2003, hoje só existe graças a manobras contábeis, como o lucro da Anses (o INSS argentino) após a estatização dos fundos de pensão privados. O ano de 2011, além de ter sido o primeiro desde o colapso com queda das reservas internacionais, pode ter fechado com déficit em conta corrente. O câmbio, fundamental para a recuperação da indústria, não é competitivo como antes, e a sensação de que o peso está barato só ilude os brasileiros com reais no bolso.

A Argentina está longe de ser exemplo para seus vizinhos, mas uma análise ampla sobre o país deve concentrar-se, hoje, mais na sua precariedade institucional, nos arroubos de autocracia de Cristina Kirchner, na duvidosa independência de uma parcela do Judiciário, na dificuldade em credenciar-se como um interlocutor maduro na arena internacional. E menos na percepção de que é um país em crise econômica, ou à beira de estar.

Daniel Rittner é repórter em Brasília.