segunda-feira, 28 de março de 2011

As viúvas da Alca erram o alvo, artigo de Sérgio Leo, jornal Valor ( 28/03/2011)

Viúvas da Alca erram o alvo
Sergio Leo


Avisita de Barack Obama ao Brasil teve um efeito sobrenatural entre alguns analistas da política externa brasileira: ressuscitou a discussão sobre a Área de Livre Comércio das Américas, Alca, a fracassada tentativa de criar um bloco comercial entre países dos três subcontinentes americanos. Foi uma oportunidade perdida, acusam esses analistas, ao apontar o fiasco das negociações como demonstração do sentimento antiamericano que teria movido o governo anterior. É uma análise tão equivocada quanto perigosa, porque desvia as atenções sobre as verdadeiras causas do mau desempenho do comércio com os Estados Unidos.

As dificuldades para encontrar argumentos coerentes na defesa da Alca como oportunidade perdida, levam defensores da tese até a apontar os exemplos do Chile e do Peru como demonstração do "erro" brasileiro. Enquanto o Brasil, de 2003 a 2010, aumentou em 35% suas vendas aos Estados Unidos, as exportações do Chile aos Estados Unidos cresceram quase 90% e as do Peru, mais de 110%. Impressionantes, os números refletem a pauta de exportações dos três países. Mais do que o poder mágico dos acordos de livre comércio, foram as características dessa pauta que orientaram o aumento das vendas aos americanos.

Brasil tem nos EUA um grande comprador de manufaturados
Segundo dados do U.S. Census Bureau, o Chile, em 2002, concentrava 40% de suas vendas aos Estados Unidos em apenas dois tipos de produtos: frutas e cobre, que agora somam 52% das vendas totais. É indício de concentração da pauta de exportações chilena, e não da saudável diversificação esperada com o acordo de livre comércio assinado em 2004 e posto em vigor anos depois.

As vendas de frutas e cobre, apenas, subiram quase 200% entre 2002 e 2010. Em termos absolutos, o resultado equivale a 70% do notável crescimento das vendas do Chile aos Estados Unidos. São ridículos, da casa de dezenas de milhares de dólares ou de quase US$ 100 mil os aumentos na venda de outros produtos.

No Peru, a pauta de exportações é mais desconcentrada, mas os produtos primários como petróleo, minerais (especialmente ouro) e frutas, principalmente azeitonas, somam 77% do total. O país tem recorrentes déficits no comércio com os americanos desde 2008 (assim como o Chile) e suas vendas de US$ 5 bilhões aos EUA cresceram principalmente pelo aumento no volume e preços de petróleo, ouro e, ah, sim, produtos industriais têxteis de casa, mesa e banho (beneficiados por regimes especiais de importação anteriores ao tratado de livre comércio).

Os peruanos têm até indicadores interessantes sobre manufaturados: suas vendas de "outras máquinas industriais" subiram 138%, de US$ 1,1 milhão para US$ 3,2 milhões. O Brasil, sem a Alca, teve de se contentar com aumento de apenas 36%. De US$ 154 milhões para US$ 209 milhões. Aumento percentual pequeno, mas responsável por vendas 1.400% superiores à dos peruanos beneficiados pelo livre comércio, um número que evidencia como podem ser enganosas as comparações desse tipo.

Uma análise pouco ideologizada das exportações dos três países - e de outros que aumentaram as vendas aos Estados Unidos a partir de acordos de livre comércio - mostra que a maioria foi beneficiada pelo aumento dos preços de commodities ou passou a encontrar mais facilidade de vender produtos manufaturados de baixo valor agregado, como têxteis (cujas vendas, aliás, caíram nesses anos recessivos, na relação Peru-Estados Unidos).

Já o Brasil tem, nos Estados Unidos, um de seus maiores compradores de manufaturados, especialmente aviões, motores, sapatos e móveis - esses últimos afetados severamente nos últimos anos pela concorrência chinesa. São o tipo do produto que mais pesadamente sofre o efeito de fatores macroeconômicos como a brutal valorização do câmbio do real em relação ao dólar, que ultrapassou 36% entre julho de 2004 - quando a grama já começava a brotar no túmulo da Alca - e a sexta-feira passada. Em 2004, a tarifa média nos Estados Unidos para produtos industriais era de 4%, dificilmente o maior obstáculo a remover no esforço de exportação aos americanos.

São fatores como o câmbio, a inacreditável tributação sobre exportações, os juros altos e a logística deficiente - além da falta de apetite das empresas brasileiras - as maiores barreiras para as vendas do Brasil aos Estados Unidos. Não são alvo dos acordos de livre comércio, e é sobre eles que se deveriam debruçar os que pranteiam a Alca falecida.

Já no governo Fernando Henrique Cardoso, quando o Brasil assumiu a co-presidência das negociações, era consenso na diplomacia brasileira que os termos desejados pelos Estados Unidos, adotados nos acordos com Chile, Peru, México e companhia, não serviam aos interesses do país. O que o governo seguinte, de Luiz Inácio Lula da Silva fez, com base na experiência do ministro Celso Amorim na Rodada Uruguai da Organização Mundial do Comércio (OMC) foi explicitar as discordâncias, para evitar o encurralamento do Brasil no fim das negociações. A estratégia do governo anterior era seguir nas negociações para determinar, ao fim, se o Brasil aceitaria ou não o acordo.

É tema passível de debate o estilo adotado pelos diplomatas designados por Amorim para discutir a Alca, pode-se discutir se foi o melhor ou não. Mas seria mais interessante saber como estariam os industriais e a balança comercial brasileiros, hoje, caso os produtos americanos cotados em dólar desvalorizado competissem no mercado nacional sem tarifas de importação, como ocorreria se a Alca estivesse em vigor. Quem sabe, em vez de comemorar algo além de 36% de aumento nas vendas aos americanos, Dilma teria de sondar, durante a visita de Obama, a possibilidade de baixar salvaguardas contra os manufaturados dos Estados Unidos, como se reivindica atualmente contra os importados chineses.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Entrevista da atriz Juliette Binoche ao jornal Valor

Assim é, se lhe parece
Carlos Helí de Almeida | Para o Valor, de Paris


Juliette em Cannes, ao receber o prêmio de melhor atriz por "Cópia Fiel": "Uso cada pedaço de mim, da minha memória e da minha imaginação no meu trabalho. É por isso que nunca me senti entediada"No meio dos turbulentos momentos que se seguiram à vitória no Oscar de 1997, com a estatueta de atriz coadjuvante por seu desempenho em "O Paciente Inglês", de Anthony Minghella, Juliette Binoche ouviu a pergunta inevitável: "Gostaria de se mudar para Hollywood?" A resposta da atriz francesa hoje soa como uma profecia: "Não, quero trabalhar com Abbas Kiarostami, porque adoro os filmes que ele faz". Depois de um longo e discreto namoro profissional entre Juliette e o premiado realizador iraniano, que rendeu um breve encontro em "Shirin" (2008), os dois finalmente se reúnem em tempo integral em "Cópia Fiel", novo trabalho do autor de "O Gosto da Cereja" (1997), que chega ao circuito brasileiro no dia 18.

O filme descreve o discreto flerte entre uma dona de antiquário francesa (Juliette) e um escritor britânico (o barítono William Shimell) ao longo de um passeio por um vilarejo da Toscana (Itália). Em um café local, os dois são tomados por um casal, engano que não é corrigido por ela e é estimulado por ele. Filmado em longos planos e recheado de diálogos em inglês, francês e italiano, a história traça um paralelo entre o conceito de original e cópia, no universo das artes, com o real e a representação, na vida real. "Deveria haver mais interação como essa entre as culturas, e acho que Abbas é um símbolo disso", elogiou a atriz de 46 anos no Festival de Cannes, de onde saiu com o prêmio de melhor atriz.

Valor: A senhora tem uma lista de diretores admirados, que vão sendo riscados à medida que consegue trabalhar com eles?

Juliette Binoche: De jeito algum! A vida não é tão simples assim. A gente tem desejos, sonhos e, algumas vezes, eles podem até acabar se realizando. Na época em que manifestei o desejo de trabalhar com o Abbas, tudo me parecia impossível, porque ele trabalhava somente no Irã, com não atores e na língua dele, a "farsi". Eu não tinha os três requisitos. Quando finalmente o conheci e tive a chance de dizer isso a ele, Abbas nunca disse não, mas também nunca disse sim. Por duas vezes ele chegou a me dizer: "Venha a Teerã". O que, na verdade, me deixou um pouco aterrorizada, por causa do que eu lia nos jornais sobre o Irã. Ficava pensando: "Tenho duas crianças! Serei capaz de levar a minha vida normalmente depois dessa experiência?"

Valor: Mas essa imagem do Irã mudou depois que você filmou sua participação em "Shirin"?

Juliette: Fiquei maravilhada em descobrir como os iranianos são tão receptivos e em como eles estão tão ligados ao que acontece no mundo em cultura, em música, poesia, tudo! É um povo muito hospitaleiro, que desenvolveu uma arte de receber bem com regras bastante específicas. A cultura persa é maravilhosa, muito delicada, e está ligada a uma forma muito espiritual de pensar, que nunca lhe é imposta. Pelo menos na intimidade do lar, porque na rua as mulheres têm que se comportar de uma determinada maneira, é claro. Dentro de casa, as mulheres são como as italianas, muito ágeis e fortes, determinadas e calorosas.

Valor: Kiarostami diz que a senhora fala italiano muito bem, porque já viveu algum tempo no país, além de ter filmado "O Paciente Inglês" lá. Essas experiências lhe foram úteis no filme?

Juliette: O fato de ter a lembrança do ritmo e do som da língua realmente me ajudou a fazer as cenas em italiano, embora não fale mais fluentemente a língua. Como atriz, uso cada pedaço de mim, da minha memória e da minha imaginação no meu trabalho. Tudo está lá em você, são experiências que o alimentam ao longo da vida. É por isso que nunca me senti entediada, porque sei que posso absorver cada momento da minha vida e usá-lo em meu trabalho. É claro que no início fiquei assustada com a ideia de falar outra língua, porque nunca sei se vou conseguir juntar as frases do diálogo, me mover e dar conta das emoções da personagem ao mesmo tempo. Já estou acostumada a interpretar em inglês, porque já faço isso há algum tempo, mas nunca havia atuado em italiano. Em todo caso, é um desafio, e adoro desafios.

Valor: Houve espaço para improvisação?

Juliette: Estava tudo no roteiro, mas adicionei alguns cacos porque não consigo não improvisar. Por exemplo, quando eu e Shimell estamos caminhando na vila e vejo um bebê vindo na nossa direção, eu me viro para ele e digo algo como "que graça de bebê", como uma espécie de flerte. Na sequência em que dirijo o carro a caminho da vila e de repente me surge uma senhora no meio da estrada, que não estava planejado, não resisti e gritei: "Por que ela não sai da minha frente?" Quase não consegui terminar a cena porque estava preocupada com aquela pessoa no meu caminho. Fiquei com medo de que Abbas fosse cortá-la na edição final, mas acabou incorporada ao filme.

Valor: Tiveram tempo para ensaiar?

Juliette: Ensaiamos por duas semanas antes de começar a filmar. Pode parecer pouco, mas é um tempo raro em cinema. Confesso que fiquei preocupada, porque algumas tomadas tinham até dez páginas de texto. Graças a Deus Abbas nos deu os fins de semana livres, que eu usava para decorar as falas. Não haveria outro jeito de fazer o filme daquela forma de filmar, tão rápida.

Valor: A senhora e Shimell dominam a tela do início ao fim. Como foi contracenar com apenas um ator o filme inteiro?

Juliette: Nunca sei no que estou me metendo, e essa é a parte excitante do trabalho, o desconhecido. Cada tomada era uma experiência quase orgástica, de sentir o prazer de terminar um tomada longa, que era quase como um movimento musical. Tenho sorte de Abbas ter confiado em mim. Ele tinha uma ideia muito exata de como seria o enquadramento de cada cena, durante toda uma sequência. Mas, dentro dos limites estabelecidos por ele e pelo diretor de fotografia, a liberdade que me foi dada era muito grande e foi muito bem recebida.

Valor: Sentiu alguma dificuldade em contracenar com um não ator?

Juliette: Na verdade, Shimell jogou o jogo de forma muito fácil. Ele conseguiu superar técnicas de filmagem bastante complexas, decorrentes de filmagem com duas câmeras ao mesmo tempo. Quando nossos personagens se confrontam, estão dialogando, a gente não está reagindo com a expressão nos olhos um do outro, porque nosso foco é a fita colada à câmera oposta a nós. Fiquei surpresa como ele entrou no jogo de sentir a reação do outro personagem sem ver a expressão do interlocutor. Bastava o tom de voz e a percepção da presença do outro ator na cena.

Valor: Sua personagem é quem guia a ação do filme...

Juliette: Sim, ela conduz toda a ação! Isso não é maravilhoso? Porque, às vezes, são as mulheres têm que arrancar as emoções dos homens! (Risos) As mulheres são capazes de despir-lhes de suas carapaças para que se revelem. Somos como deusas do amor, estamos aqui para revelar os homens. Se não fosse pelos homens, como poderíamos ser mulheres?

Valor: Como foi voltar à Toscana, região onde você filmou "O Paciente Inglês"?

Juliette: Voltar lá depois da morte de Minghella [ocorrida em 2008] foi avassalador, porque ainda sinto muitas saudades dele. E também porque a experiência com "O Paciente Inglês" foi especial, iluminadora. Sentir falta de alguém e ver a beleza da paisagem daquela região me fez lembrar muito dele, causou uma sentimento estranho, uma mistura de saudade e carinho. Acho que essas lembranças, essas sensações, me alimentaram durante as filmagens de "Cópia Fiel".

Entrevista do petista Alexandre Padilha, ministro da Saúde, jornal Valor

"Saúde deve mostrar serviço com verba que tem"
Raymundo Costa | De Brasília



Padilha: "O ressarcimento dos planos de saúde ao SUS é uma prioridade que o cartão vai poder acelerar"Antes de pedir mais dinheiro para a saúde, o ministro Alexandre Padilha vai tentar gastar melhor o que tem. Só com isso - acredita - será possível convencer a sociedade a permitir novas formas de financiamento e levar a saúde a padrões de primeiro mundo. Segundo Padilha, o Brasil tem o programa - Sistema Unificado de Saúde (SUS) - que mais faz transplantes e hemodiálises do mundo, e, no entanto, gasta apenas R$ 660 per capita. Isso somados União, Estados e municípios. Só a União investe R$ 304 per capita. Inglaterra e Canadá gastam seis vezes mais. Há dois meses no Ministério da Saúde, Padilha diz que há uma revolução a caminho, que vai desde um novo modelo de construção de unidades de saúde, até a mudança da forma de remuneração dos hospitais. Ele quer regionalizar os atendimentos de saúde. Cobrar compensação dos planos por seus segurados atendidos na rede SUS é prioridade dele e da presidente. Não dá prazo, mas diz que já este mês concluirá a primeira etapa da implantação do Cartão SUS. A seguir, a entrevista concedida ao Valor:

Valor: O problema da saúde é mais de gestão ou de dinheiro?

Alexandre Padilha: Eu não tenho dúvidas de que a gente pode fazer muito mais com o que temos. A prioridade é dupla: investir melhor o que nós temos e ter mais para investir cada vez melhor. Agora eu tenho plena consciência de que no debate com a sociedade, neste momento, a prioridade do ministério é mostrar claramente que pode fazer mais com o que tem, aumentar os controles, ter pactos cada vez mais claros com o que tem e definir melhor suas prioridades, até para a sociedade ter segurança e a economia brasileira poder colocar mais recursos para a saúde para que a gente possa atingir os patamares de outros países. Porque há países em que o investimento no setor é de dez, 11, 12 vezes mais per capita.

Valor: Com atendimento universal?

Padilha: O dos EUA é o que mais investe, é 11, 12 mais, mas é muito privado. Canadá e Inglaterra, seis, sete vezes mais. No Brasil, a saúde suplementar é quase três vezes maior que a saúde pública per capita. Mas atende a 45 milhões de pessoas. O SUS, teoricamente, atende 190 milhões, mas, na prática, responde por 150 milhões. O investimento per capita da saúde suplementar é quase três vezes mais o per capita da saúde pública.

Valor: O senhor vai retomar o projeto das fundações estatais para gerenciar a saúde?

Padilha A prioridade é o aprimoramento da gestão do SUS. Acho um grande erro misturar aprimoramento das gestão, com modelo gerencial administrativo.

Valor: O que precisa para que os hospitais públicos tenham o padrão da rede Sarah Kubitschek?

Padilha: Temos alguns hospitais públicos do mesmo padrão. Alguns hospitais universitários. A rede Sarah Kubitschek é uma rede que nos orgulha a todos. É uma rede em parte é financiada com recursos públicos. Tem excelência na gestão.

Valor: É uma fundação. O senhor é contrário a esse modelo?

Padilha: Só não acho que essa seja a centralidade do debate do modelo de gestão. São alternativas gerenciais importantes. Nós precisamos compreender o SUS. O sistema brasileiro é formado por modelos gerenciais diversos. Isso é a riqueza do SUS. Eu sou favorável a qualquer modelo gerencial que cumpra suas diretrizes. No SUS você tem hospitais só estatais de altíssima qualidade, e hospitais só estatais que não são nada públicos, são quase privados. São tão privados quanto hospitais privados, com trabalhadores poucos valorizados. No SUS você tem fundações de altíssima qualidade que seguem as diretrizes do SUS e você tem fundações de baixíssima qualidade na execução. Você tem modelos novos de PPPs, de alta qualidade assim como de baixa qualidade. Precisamos é aprimorar a gestão do SUS na definição da prioridades para investimento.

Valor: Quais são essas prioridades?

Padilha: Às vezes há recurso, investimento, equipamento e estrutura, mas o processo de trabalho na unidade faz com que o atendimento seja de baixa qualidade.

Valor: Por que?

Padilha: A unidade precisa ter uma agenda aberta para o acesso. Há unidades de saúde que têm equipamento, estrutura e profissionais, mas funcionam com a agenda fechada, não acolhem quem chega. Quando acolhe, não faz análise de risco. Então, quem está em situação grave tem o mesmo cuidado e prioridade de quem não está, fica no mesmo lugar, não tem espaço de organização para cada um deles.

"Mais do que implantar fundações precisamos que as unidades estejam abertas a acolher quem chega"
Valor: Como será a mudança na gestão?

Padilha: A prioridade, em gestão, é ter instrumentos mais sólidos no contrato entre União, Estados e municípios. Que este contrato seja fruto do que nós estamos chamando de mapa sanitário regional.

Valor: O que é esse mapa?

Padilha: É preciso regionalizar a saúde no país. Esse mapa vai definir qual o território necessário para compor uma rede que vai da atenção básica até uma certa complexidade. Nesse território tem vários gestores. A gestão pura municipal, outro é um hospital estadual, outro, um hospital filantrópico credenciados do SUS. Então você tem vários modelos gerenciais no espaço regional. A nossa centralidade é a gestão das redes no espaço territorial, é isso que pode melhorar a qualidade de saúde do país.

Valor: Como centralizar a gestão?

Padilha: Fazendo os contratos entre Estados e municípios a partir da realidade regional com objetivos e metas claras a serem cumpridas e acompanhadas.

Valor: Fácil assim?

Padilha: Junto com isso pensamos em criar um indicador nacional de garantia de acesso que tenha expressão regional e, de certa forma, tenha o que o SUS oferta para as necessidades de saúde daquela região, o que consegue resolver naquela região. Em que medida o acesso é de qualidade e do nível de satisfação do usuário. Precisamos de um indicador de satisfação do usuário. Isso para compor um grande indicador nacional que pode ter a expressão regional, a expressão estadual e que seja um marcador para a melhoria da saúde para aquela região, para aquele Estado.

Valor: Para que serviria esse indicador?

Padilha: Por exemplo, uma região hoje é nota dois. Nós queremos que em quatro anos ela chegue a cinco. Por esse indicador, União, Estados e municípios definirão a estratégia para que essa região chegue aos cinco.

Valor: A presidente Dilma diz que antes é preciso saber "para quê" vai se pedir mais dinheiro para a Saúde. O senhor sabe?

Padilha: A prioridade são essas duas grandes portas de entrada do SUS: atenção básica e a porta da urgência e emergência. A atenção básica, para ser resolutiva, precisa ter o suporte permanente da atenção especializada.

Valor: Como assim?

Padilha: O médico que está no centro de saúde tem que analisar seu diagnóstico com um médico da atenção especializada fazendo uso da telemedicina. Isso significa reestruturar fisicamente a unidade básica de saúde. É preciso renovar o padrão construtivo das unidades de saúde do país. A vida média dos nossos hospitais é de 35, 40 anos. São construídos no padrão de uma medicina que não existe mais. Por exemplo: a realidade das urgências e emergências. A grande maioria foi construídas quando as urgências e emergências eram um espaço pequeno, a centralidade nos hospitais eram os leitos de internação crônica, de longa duração. Salvavam-se poucas vidas na urgência e emergência. Isso mudou nos últimos 15 anos. Então você tem de mudar todo o padrão construtivo das urgências e emergências do país, para garantir equipes estejam lá, quando forem demandadas, mas também assegurar a relação desta unidade com a atenção hospitalar de média complexidade.

Valor: Como seria esse espaço?

Padilha: A ideia é ter urgências e emergências amplas. Em rede. Na atenção básica tem uma sala de observação, é o primeiro atendimento. No meio do caminho tem uma Unidade de Pronto Atendimento e o transporte seguro, que é o Samu. É preciso ter uma unidade de urgência e emergência hospitalar em que a entrada seja ampla, faça classificação de risco, diga quem é de risco alto, vermelho, quem é de risco intermediário, amarelo, quem não é de risco. Haverá também o leito de retaguarda. Um dos problemas da urgência lotada não é que as pessoas não estejam sendo atendidas. Falta um leito de retaguarda para encaminhar essa pessoa.

Valor: Onde se poderia justificar novos recursos?

Padilha: O acesso ao que tem de mais alta complexidade. O Brasil hoje tem um déficit importante de cirurgia de ortopedia. Seja de cirurgia de urgência e emergência de trauma, que é decorrente de acidente, seja de reabilitação. Há também uma população cada vez maior de acesso a medicamentos de alto custo, quimioterápicos, radioterápicos, que impactam fortemente a realidade de saúde. Isso é de alto custo. O Brasil é o país que mais faz transplante público no mundo, o que tem a maior rede de hemodiálise totalmente pública no mundo. Gratuita, universal.

Valor: Com dois meses no cargo, já deu para identificar os principais gargalos da saúde?

Padilha: Um é esse: os mecanismos de contratualização entre União, Estados e municípios. É um gargalo importante, fundamental. Ou seja, os instrumentos que definem os repasses entre União, Estados e municípios, e que estabelecem metas de compromisso e que induz financeiramente e premia quem cumpre meta. Outra prioridade é a definição do que compõe uma rede de atenção à saúde.

Valor: Por quê?

Padilha: O processo de construção do SUS foi um processo de descentralização para os municípios. Se jogou muito peso no processo de descentralização e menos nas outras diretrizes fundamentais do SUS que são o acesso e a integralidade, ou seja, dar para a pessoa o cuidado integral.

Valor: A saúde suplementar atende mais de 45 milhões de pessoas, que também se servem da rede pública. Quando é que os planos de saúde vão começar a ressarcir o SUS? Isso também não é financiamento da saúde?

Padilha: Esse ressarcimento é prioridade nossa. Nós primeiro precisamos aprimorar as informações que o SUS tem dos atendimentos dos planos de saúde para que se possam estabelecer metas de ressarcimento. A ideia do Cartão Nacional de Saúde, conhecido como o cartão SUS, também é pra isso. Ele é fundamental para reorganizar o sistema. É nossa prioridade, é prioridade da presidenta.

Valor: Qual é a parcela dos usuários dos planos atendida pelo SUS?

Padilha: Há várias estimativas e aproximações. Algumas unidades hospitalares dizem que chega a 15%, 20%, mas hoje não se tem esse dado com precisão. O que se tem hoje é uma estimativa que varia de R$ 500 milhões a R$ 1 bilhão por ano, mas são estimativas. O que se sabe muito claramente é que em geral é muito comum quem tem plano de saúde se utilizar do SUS na urgência e emergência. É muito comum também para o uso do medicamento mais caro, quimioterápico, radioterapia que o plano não cobre, transplantes, cirurgias com alta tecnologia. Isso é muito comum. O ressarcimento é fundamental para compensar, e, mais do que isso, para identificar cada vez mais quais são os pontos de complementariedade. A partir da definição desses pontos é possível construir uma agenda comum de organização dos serviços.

Valor: Como o senhor pretende convencer os planos de saúde, que resistem a fazer ressarcimento?

Padilha: Há uma disputa, inclusive de questões legais. São questionamentos não sobre a lei, que estabelece limites para o mecanismo de ressarcimento. Mas há um interesse também da saúde suplementar de que essa complementariedade seja mais clara. Nós estamos conversando.

"Precisamos de um indicador de satisfação do usuário para compor um índice nacional que sirva às metas da saúde"
Valor: Já existe um cronograma para a implantação do cartão?

Padilha: Fechado não. Nós estamos fechando agora um diagnóstico de quais são os municípios que já usam hoje. Vários municípios já usam o número do cartão SUS para a organização e gestão de seus serviços. Esse diagnóstico fica pronto agora na metade de março. São cerca de 700 municípios. Não necessariamente têm um cartão. Às vezes usam só o número que está cadastrado. Há quase 100 milhões de pessoas cadastradas com o registro do número SUS. Tem 130 milhões de pessoas cadastradas e 100 milhões de cadastros limpos, higienizados de um número do cartão SUS. São Paulo usa o número do cartão SUS para toda a rede básica do Estado. Diadema (SP) usa para tudo: básica, média e alta complexidade e Belo Horizonte (MG) também.

Valor: Então o cartão sai este ano, depois de oito anos e dois governos de discussão?

Padilha: Não dou prazo. O Conselho Nacional de Saúde já discutiu o assunto ano passado.

Valor: O senhor vai primeiro tentar o acordo com a saúde suplementar para ter mais recursos ou o aumento do financiamento via CPMF ou CSS?

Padilha: Eu não vou discutir fonte de financiamento. Meu esforço é aprimorar a gestão para fazer mais com o que nós temos para que o crescimento da economia seja generoso com a saúde no país. Agora uma coisa não tem relação com a outra. O ressarcimento não resolve o problema do financiamento do SUS. O ressarcimento é muito mais que uma compensação pelo uso - ele permite identificar complementariedades entre o SUS e a saúde suplementar.

Valor: O senhor vai reajustar a tabela SUS como reclamam os hospitais?

Padilha: Estou convencido de que nós precisamos apostar num novo modelo de financiamento dos procedimentos da saúde. Todas as experiências mostram que se você puder fugir do modelo de remuneração por procedimento e passar para um modelo de remuneração por pacote - diagnóstico, tratamento e qualidade de serviço, sobretudo alta - você tem resultados e utilização melhor dos recursos. A grande demanda que os hospitais fazem em relação à tabela SUS não é só se vai ou não reajustar, mas discutir qual é o perfil assistencial de cada um desses hospitais. E você sai comprando procedimento pontual em cada hospital. Em vez de pagar procedimento, eu prefiro contratar 20, 30 leitos, blocos de leito, contratar as equipes desse hospital.

Valor: Pelo visto, logo vamos ter um Plano Nacional de Saúde.

Padilha: Ah, isso também!

Valor: Como está sua relação com os governadores da oposição?

Padilha: Ótima. Com todos os da oposição. Um grau de convergência grande tanto com os da base [de apoio ao governo] quanto com os da oposição. Todos sentem na pele a escassez da falta de médico onde se precisa, da distribuição de médicos, da necessidade de reestruturação física das unidades, de se pensar novos modelos da contratação e remuneração de serviços que são ofertados. Hoje há uma grande convergência em relação aos desafios da saúde, não só dos governadores quanto dos secretários dos partidos de oposição. Com alguns deles eu tenho identidade inclusive profissional anterior. Em São Paulo, além de ótima relação profissional com o governador Geraldo Alckmin [PSDB}, do ponto de vista político, o secretário de Saúde é professor da USP, instituição à qual eu estava ligado, então a relação é a melhor possível. Isso é bom porque acho que podemos construir um grande consenso entre a base do governo e a oposição sobre os desafios da saúde no país.

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