sexta-feira, 11 de março de 2011

Entrevista da atriz Juliette Binoche ao jornal Valor

Assim é, se lhe parece
Carlos Helí de Almeida | Para o Valor, de Paris


Juliette em Cannes, ao receber o prêmio de melhor atriz por "Cópia Fiel": "Uso cada pedaço de mim, da minha memória e da minha imaginação no meu trabalho. É por isso que nunca me senti entediada"No meio dos turbulentos momentos que se seguiram à vitória no Oscar de 1997, com a estatueta de atriz coadjuvante por seu desempenho em "O Paciente Inglês", de Anthony Minghella, Juliette Binoche ouviu a pergunta inevitável: "Gostaria de se mudar para Hollywood?" A resposta da atriz francesa hoje soa como uma profecia: "Não, quero trabalhar com Abbas Kiarostami, porque adoro os filmes que ele faz". Depois de um longo e discreto namoro profissional entre Juliette e o premiado realizador iraniano, que rendeu um breve encontro em "Shirin" (2008), os dois finalmente se reúnem em tempo integral em "Cópia Fiel", novo trabalho do autor de "O Gosto da Cereja" (1997), que chega ao circuito brasileiro no dia 18.

O filme descreve o discreto flerte entre uma dona de antiquário francesa (Juliette) e um escritor britânico (o barítono William Shimell) ao longo de um passeio por um vilarejo da Toscana (Itália). Em um café local, os dois são tomados por um casal, engano que não é corrigido por ela e é estimulado por ele. Filmado em longos planos e recheado de diálogos em inglês, francês e italiano, a história traça um paralelo entre o conceito de original e cópia, no universo das artes, com o real e a representação, na vida real. "Deveria haver mais interação como essa entre as culturas, e acho que Abbas é um símbolo disso", elogiou a atriz de 46 anos no Festival de Cannes, de onde saiu com o prêmio de melhor atriz.

Valor: A senhora tem uma lista de diretores admirados, que vão sendo riscados à medida que consegue trabalhar com eles?

Juliette Binoche: De jeito algum! A vida não é tão simples assim. A gente tem desejos, sonhos e, algumas vezes, eles podem até acabar se realizando. Na época em que manifestei o desejo de trabalhar com o Abbas, tudo me parecia impossível, porque ele trabalhava somente no Irã, com não atores e na língua dele, a "farsi". Eu não tinha os três requisitos. Quando finalmente o conheci e tive a chance de dizer isso a ele, Abbas nunca disse não, mas também nunca disse sim. Por duas vezes ele chegou a me dizer: "Venha a Teerã". O que, na verdade, me deixou um pouco aterrorizada, por causa do que eu lia nos jornais sobre o Irã. Ficava pensando: "Tenho duas crianças! Serei capaz de levar a minha vida normalmente depois dessa experiência?"

Valor: Mas essa imagem do Irã mudou depois que você filmou sua participação em "Shirin"?

Juliette: Fiquei maravilhada em descobrir como os iranianos são tão receptivos e em como eles estão tão ligados ao que acontece no mundo em cultura, em música, poesia, tudo! É um povo muito hospitaleiro, que desenvolveu uma arte de receber bem com regras bastante específicas. A cultura persa é maravilhosa, muito delicada, e está ligada a uma forma muito espiritual de pensar, que nunca lhe é imposta. Pelo menos na intimidade do lar, porque na rua as mulheres têm que se comportar de uma determinada maneira, é claro. Dentro de casa, as mulheres são como as italianas, muito ágeis e fortes, determinadas e calorosas.

Valor: Kiarostami diz que a senhora fala italiano muito bem, porque já viveu algum tempo no país, além de ter filmado "O Paciente Inglês" lá. Essas experiências lhe foram úteis no filme?

Juliette: O fato de ter a lembrança do ritmo e do som da língua realmente me ajudou a fazer as cenas em italiano, embora não fale mais fluentemente a língua. Como atriz, uso cada pedaço de mim, da minha memória e da minha imaginação no meu trabalho. Tudo está lá em você, são experiências que o alimentam ao longo da vida. É por isso que nunca me senti entediada, porque sei que posso absorver cada momento da minha vida e usá-lo em meu trabalho. É claro que no início fiquei assustada com a ideia de falar outra língua, porque nunca sei se vou conseguir juntar as frases do diálogo, me mover e dar conta das emoções da personagem ao mesmo tempo. Já estou acostumada a interpretar em inglês, porque já faço isso há algum tempo, mas nunca havia atuado em italiano. Em todo caso, é um desafio, e adoro desafios.

Valor: Houve espaço para improvisação?

Juliette: Estava tudo no roteiro, mas adicionei alguns cacos porque não consigo não improvisar. Por exemplo, quando eu e Shimell estamos caminhando na vila e vejo um bebê vindo na nossa direção, eu me viro para ele e digo algo como "que graça de bebê", como uma espécie de flerte. Na sequência em que dirijo o carro a caminho da vila e de repente me surge uma senhora no meio da estrada, que não estava planejado, não resisti e gritei: "Por que ela não sai da minha frente?" Quase não consegui terminar a cena porque estava preocupada com aquela pessoa no meu caminho. Fiquei com medo de que Abbas fosse cortá-la na edição final, mas acabou incorporada ao filme.

Valor: Tiveram tempo para ensaiar?

Juliette: Ensaiamos por duas semanas antes de começar a filmar. Pode parecer pouco, mas é um tempo raro em cinema. Confesso que fiquei preocupada, porque algumas tomadas tinham até dez páginas de texto. Graças a Deus Abbas nos deu os fins de semana livres, que eu usava para decorar as falas. Não haveria outro jeito de fazer o filme daquela forma de filmar, tão rápida.

Valor: A senhora e Shimell dominam a tela do início ao fim. Como foi contracenar com apenas um ator o filme inteiro?

Juliette: Nunca sei no que estou me metendo, e essa é a parte excitante do trabalho, o desconhecido. Cada tomada era uma experiência quase orgástica, de sentir o prazer de terminar um tomada longa, que era quase como um movimento musical. Tenho sorte de Abbas ter confiado em mim. Ele tinha uma ideia muito exata de como seria o enquadramento de cada cena, durante toda uma sequência. Mas, dentro dos limites estabelecidos por ele e pelo diretor de fotografia, a liberdade que me foi dada era muito grande e foi muito bem recebida.

Valor: Sentiu alguma dificuldade em contracenar com um não ator?

Juliette: Na verdade, Shimell jogou o jogo de forma muito fácil. Ele conseguiu superar técnicas de filmagem bastante complexas, decorrentes de filmagem com duas câmeras ao mesmo tempo. Quando nossos personagens se confrontam, estão dialogando, a gente não está reagindo com a expressão nos olhos um do outro, porque nosso foco é a fita colada à câmera oposta a nós. Fiquei surpresa como ele entrou no jogo de sentir a reação do outro personagem sem ver a expressão do interlocutor. Bastava o tom de voz e a percepção da presença do outro ator na cena.

Valor: Sua personagem é quem guia a ação do filme...

Juliette: Sim, ela conduz toda a ação! Isso não é maravilhoso? Porque, às vezes, são as mulheres têm que arrancar as emoções dos homens! (Risos) As mulheres são capazes de despir-lhes de suas carapaças para que se revelem. Somos como deusas do amor, estamos aqui para revelar os homens. Se não fosse pelos homens, como poderíamos ser mulheres?

Valor: Como foi voltar à Toscana, região onde você filmou "O Paciente Inglês"?

Juliette: Voltar lá depois da morte de Minghella [ocorrida em 2008] foi avassalador, porque ainda sinto muitas saudades dele. E também porque a experiência com "O Paciente Inglês" foi especial, iluminadora. Sentir falta de alguém e ver a beleza da paisagem daquela região me fez lembrar muito dele, causou uma sentimento estranho, uma mistura de saudade e carinho. Acho que essas lembranças, essas sensações, me alimentaram durante as filmagens de "Cópia Fiel".

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