sexta-feira, 24 de junho de 2011

Morte ao amanhecer, Eric Nepomuceno

Eric Nepomuceno | Para o Valor, do Rio


Durante quase toda sua vida adulta, Ernest Hemingway teve um lema que serviu de norte e de guia para tudo que fez: "Il faut (d'abord) durer". Era assim que via a vida: era preciso, acima de tudo, resistir. Até que um dia cansou, ou achou que as coisas já não tinham mais graça, ou se deixou sucumbir. Seja pela razão que for, pouco antes do amanhecer do domingo, 2 de julho de 1961, ele resolveu que havia resistido o suficiente. E como tudo em sua vida havia sido absolutamente intenso, cada minuto vivido com sofreguidão, resolveu fazer jus à própria história, indo embora de vez.

Na casa de campo de Ketchum, uma cidadezinha mineira cinzenta e sem graça no Estado de Idaho, só havia silêncio. Ele foi até o armário onde guardava as espingardas e carabinas de caça, escolheu uma das favoritas, uma velha Boss de cano duplo. Sentou-se na cadeira de que mais gostava, apoiou a carabina no chão de madeira polida, pôs os dois canos na boca e, com os dedos do pé, apertou o gatilho. Era como se, com a vida que viveu, ele não pudesse se matar de um jeito convencional, se é que existe uma forma convencional de se matar. Era preciso partir do mesmo jeito que havia vivido: com a mais absoluta das paixões.

Continuo acreditando que, em seu tempo, Ernest Hemingway se considerava, de certa maneira, o último dos grandes cavalheiros medievais, o último dos grandes guerreiros. Chegou a pensar que tinha certeza absoluta de que compreendia a pena, a dor e a tristeza em todas as suas formas, incluindo as dele. Sua moral foi, em última instância, a do amo diante do vassalo: a do homem que vive da vitória, do prestígio; a de quem não aceita o cativeiro, aceita a morte: quem aceita a vida cativa são os vassalos, que jamais dominarão. O amo pode ser destruído, mas não pode ser vencido. Foi, aliás, o que disse um de seus personagens permanentes e invulneráveis, o velho Santiago de "O Velho e o Mar": "Mas o homem não foi feito para a derrota. Um homem pode ser destruído, mas não pode ser derrotado".

"O homem não foi feito para a derrota. Um homem pode ser destruído, mas não pode ser derrotado", falou pela boca de um personagem
É possível que Hemingway jamais tenha lido Georges Bataille. Mas certamente concordaria com ele, quando diz que, sem a intensidade da paixão, "a vida é, sem dúvida, uma cilada cujo limite é a comodidade, cuja verdade é o medo de ir longe demais". Quando a paixão se apagou para Hemingway, o limite veio na forma de uma velha carabina de cano duplo. Como se ele tivesse de repente entendido que tudo estava, de certa maneira, imóvel para sempre e só havia aquela saída.

Na derradeira noite, a do sábado, 1º de julho de 1961, ele foi com a mulher, Mary Welsh, e um velho amigo, George Brown, jantar no restaurante Christiana. Depois, em casa, ouviu Mary cantar uma canção italiana, "Tutti mi Chiamano Bionda", e chegou a fazer coro em alguns versos mais alegres. Então foi para o quarto, vestiu seu pijama azul e acendeu a luz da cabeceira, como se fosse ler alguma coisa. No amanhecer do dia seguinte, Mary Welsh acordou com o estrondo do tiro.

"A vida de qualquer homem termina da mesma maneira", disse ele certa vez. "São os detalhes de como ele viveu e de como ele morreu que distinguem um homem de outro." Bom: não resta dúvida alguma de que, no seu caso, os detalhes de como viveu já o distinguiriam da maioria de seus contemporâneos. Foi tamanho seu protagonismo, deu a si mesmo tamanha visibilidade, que acabou se tornando personagem de si próprio. Cada uma das experiências pelas quais passou - e foram inúmeras, de todo tipo - acabou sendo levada para a sua escrita. Todas essas experiências foram vividas intensamente e revividas na memória. Sua obra gira ao redor de um certo número de aventuras que, somadas, fizeram de sua vida uma aventura que se renovava sem cessar. Quando as circunstâncias interromperam esse ritmo renovador, esse ciclo permanente, o caminho mais lógico foi a velha carabina.


Ele sempre quis ter tudo. O menino que se orgulhava de não sentir medo de nada virou o adulto que fez um personagem, Harry, o escritor moribundo do esplêndido conto "As Neves do Kilimanjaro", dizer o seguinte: "Não gosto de abandonar nada. Não gosto de deixar nada atrás de mim". Hemingway definiu Harry como um homem que "havia amado demais, perdido muitíssimo e acabado com tudo". Era como se estivesse descrevendo a si mesmo: alguém que quis ver tudo, capturar tudo, aprender tudo, evitando sempre as pedras que pudessem facilitar naufrágios.

Em seus livros, Hemingway quis escrever o que de verdade acontecia na vida real. Insistia nisso: bom livro é o que parece ter acontecido de verdade, que passe ao leitor a sensação concreta de ter, ele mesmo, vivido aquela história. Talvez por isso tenha se obstinado tanto em se apropriar da realidade das pessoas, em possuir completamente a própria vida.

Claro que muitas vezes a tal vida real não passou de inventos de quem sentia uma atração irresistível pela aventura. Foi assim que, em 1942, conseguiu convencer o embaixador dos Estados Unidos em Cuba, Spruille Braden, a autorizá-lo a organizar um "serviço particular de contrainformação" e transformar seu iate de pesca, o Pilar, em barco de espionagem, para detectar submarinos alemães. Para convencer Braden, não titubeou em mentir, dizendo que havia ajudado os republicanos espanhóis a armar um sistema parecido na Madri de 1937, quando a cidade estava acossada pelas tropas de Francisco Franco. A aventura durou alguns meses, não rendeu fruto algum e fez que Hemingway fosse, até o fim da vida, espionado. É que para o diretor do FBI, Edgar Hoover, ele era claramente um simpatizante do comunismo.

Insistia nisto: bom livro é o que parece ter acontecido de verdade, que passe ao leitor a sensação concreta de ter vivido aquela história
Poucos escritores tiveram, enfim, sua vida tão devassada, estudada, revirada pelo avesso, do que Ernest Hemingway. Sabe-se dele, provavelmente, mais do que de qualquer outro escritor contemporâneo. Claro que, com seu exibicionismo, foi o próprio Hemingway quem mais contribuiu para isso. Soube ser "bwana" em suas andanças na África, pescador em Cuba, deixou-se deslumbrar entre os cavalheiros aristocráticos italianos, foi um camarada inquieto - e muitas vezes irresponsável - nas trincheiras da Guerra Civil Espanhola, foi egoísta, vaidoso, impertinente, dono de um sentido muito peculiar de machismo, um tanto fanfarrão, briguento, um tanto mentiroso, quase sempre mal-educado. Mas foi também um homem generoso, leal, tinha obsessão pela honestidade, foi amigo fraterno de seus amigos. E tudo isso está em seus personagens, todas as contradições da alma humana, todos os desvãos do medo e da coragem.

Certamente, nos dias de hoje ele seria uma figura absolutamente contraditória e criticável. Da mesma forma que sempre haverá dúzias de críticos de plantão, prontos para fulminar sua obra cheia de falhas, cheia de anacronismos.

Certamente, nos dias de hoje ele continua sendo um referencial básico para quem se lança no mais solitário de todos os ofícios, o de escritor. Deixou lições exemplares em suas entrevistas e, claro, em seus escritos. "Uma vez que escrever tenha se transformado no vício principal e no maior prazer", disse ele na célebre entrevista a George Plimpton, da "The Paris Review", "só a morte pode dar-lhe um fim." Foi como ele viveu, foi o que ele fez.


Até hoje se discute a distância, em termos de qualidade, de obra finalizada, entre seus contos e seus romances. A exemplo de outros grandes autores, Hemingway poucas, raríssimas vezes alcançou em seus textos mais longos o mesmo brilho e a mesma permanente consistência de seus relatos breves. Um de seus discípulos confessos, Gabriel García Márquez, certa vez deu uma explicação para isso. Disse ele: "É compreensível. Uma tensão interna como a dele, submetida a um domínio técnico tão severo, é insustentável dentro do âmbito vasto e incerto de um romance".

Deve ter razão. Muitos de seus romances parecem contos que foram esticados além da conta. Mas mesmo neles (e, claro, principalmente nos contos) aparecem relances de perfeição, com descrições insólitas, diálogos essenciais, de uma tensão única. E em tudo, ou praticamente tudo o que escreveu, Hemingway conseguiu alcançar seu objetivo mais complexo e difícil: passar ao leitor a sensação de que ele próprio, leitor, tenha estado lá, vivido aquilo tudo que está escrito. Porque o autor, o homem que queria ter tudo, não queria perder nada, não queria deixar nada atrás de si, mostrava um enorme poder de se apoderar da vida e do mundo enquanto escrevia.

Tudo aquilo que Hemingway escreveu revela um instante que foi dele. Tudo aquilo que Hemingway escreveu pertence a ele. Para sempre.

Há 50 anos, Ernest Hemingway se despediu da vida com a mesma dureza que havia vivido. Deixou instruções claras: as caixas de papelão que guardavam sua correspondência e seus manuscritos frustrados e abandonados só deveriam ser abertos a estudiosos de seus livros. Jamais deveriam ser publicados. Deixou intacta a sua casa de San Francisco de Paula, a lendária Finca Vigía, a meia hora de carro de Havana.

Bem: o conteúdo das caixas foi quase todo publicado. Um de seus filhos chegou a reescrever e completar um manuscrito deixado pela metade. Suas cartas estão à disposição de qualquer curioso. O quadro "La Masía", fundamental na obra de seu amigo Joan Miró, foi tirado de Cuba. Em seu lugar deixaram uma reprodução, da mesma forma que o original de Juan Gris foi substituído por uma cópia.

Em 1983, na Fundação Miró, em Barcelona, pude ver "La Masía". Impossível não lembrar sua história: nos anos 20, Hemingway e Miró moravam pobres em Paris. Os dois lutavam boxe. Serviam de "sparring" a troco de um punhado de francos. Quando não havia ninguém, os dois lutavam, um com o outro. Até hoje imagino o gigante Hemingway contra o miúdo Miró. Certo dia, Miró terminou de pintar "La Masía". E vendeu para o amigo. O quadro era muito grande, foi preciso alugar um carrinho de mão para levar até o apartamento minúsculo onde ele vivia com Hadley, sua primeira mulher, mãe de seu primeiro filho.

Impossível não pensar em que tempos foram aqueles, naquela cidade luminosa. Impossível não pensar que Ernest Clarence Miller Hemingway, um dos seis filhos do médico Clarence Edmond Hemingway, nascido em Oak Park, Illinois, em 21 de julho de 1899, soube se apoderar desse tempo, daquela e de muitas cidades mais. Foi um caçador solitário de verdades absolutas e de leões africanos. Viveu o que se vivia nas grandes touradas: o perigo e a coragem, o medo e a malícia, a dignidade e a honra, o silêncio e a alegria, o respeito e o desprezo, o sol e a sombra.

Resistiu o que pôde. E, quando se foi, se fez acompanhar por um estrondo.

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